Larissa não sabe que eu sei que ela não sabe. E mesmo assim, todos esses anos ela moldou sua vida ao bel prazer pela minha vontade.
Hoje ela acordou mais tarde. Quase se atrasa para a escola. Se não fosse seu pai, Roberto, que chegava mais cedo do trabalho e não a levasse de carro para a escola ela perderia o fato de hoje em sua turma. No portão de entrada ela se despediu do pai. Sentia vergonha por ser levada até ali sob as asas dele. Mesmo pensando nisso, as horas agradeceram que ela chegou no tempo. Passou pelo portão com o porteiro de olhos fitados nela. Não prestava atenção no seu corpo, não não não — prestava atenção para a sua presteza com o tempo, e, ademais, seu uniforme: se a meia estava muito abaixo do joelho, se a saia era muito curta ou a luz do sol naquele dia era forte demais para calculadamente ver o sutiã um pouco mais escuro sob a roupa escolar. Ela adquiriu o passe de passagem psicológico.
Estava sozinha no caminho quando olhou para trás e viu seu pai a encarando do carro. Minto: não o viu, o vidro do carro era escuro demais para ela ver. Mesmo a luz que permitiria ver um sutiã não mostrava o interior do automóvel. Mas Larissa, dezesseis anos morando sob o mesmo teto que aquele homem, sabia por certo que no mínimo ele sofria uma preocupação paternal, nem que fosse no mero âmago onde só familiares e consanguíneos conseguem identificar. Também olhava, afinal, com suspeita e esperança de que não fosse a última a ter passado pelos portões do colégio.
Larissa queria beber água mas a este horário a aula já começava. Se bebesse no bebedouro se atrasaria mais meio minuto.
O professor, afinal, era o Richard de geografia. Ele não tolerava que alunos chegassem atrasados em sua aula. Não buscava saber o motivo, só queria que não chegassem… depois dele. Não gostava de ter que dar Boa tarde para cada aluno que entrasse depois enquanto estava completamente focado em preparar as coisas da aula.
Larissa passou por um deserto de almas até alcançar a porta da sala. A garganta seca, os cabelos colando no rosto do suor do sol, frio na barriga e 1,9 de tremedeira na mão. Pôs a mão na maçaneta; esquecera de bater na porta antes.
Aqui havia a chance de ela errar a sala como aconteceu das outras vezes. Não foi por sorte senão destreza pelo medo de cometer mais um erro estando num instante tenso como este que ela acertou a sala.
Viu a cara de Richard encarando-a com os óculos. Lembrou-se de seu pai. Será que teria o mesmo rosto dentro do carro? “Vai filha! Vai filha! Antes que você chegue atrasada!”, pensava ela estar falando o velho dentro do automóvel negro. Por certo, Richard também tinha expressões que só no pensamento eram faladas. Ela desgostava de caras que usam óculos. Não dá para ver neles e por esses o que eles realmente querem quando chegam pra falar com ela. O plástico dos óculos, afinal, uma substância morta, não deixa que ela faça uma leitura d’alma. Só podia ser um morto, uma porra que finge não ter alma, pensava ela.
— Boa noite, Elaine. — errou! Ponto para Larissa.
— É Larissa, professor. E boa tarde.
— É, sim, sim. Larissa, desculpe…
Dali da frente ela ouviu os alunos lá atrás sorrindo e rindo o pecado cometido ali em meio à sala.
— Falta mais alguém, pessoal?
De fato faltava: faltava Lucas e Matheus; um colega deles, junto com mais três que não conversavam muito com eles mas queriam mostrar certa compaixão pelos colegas e assim deixar transparecer que tinham alguma afinidade com eles, falaram sinceramente quem eram os que faltavam. O professor não deixou que terminassem a última sílaba de seus nomes.
— Vão ficar lá fora, pois já passou do horário do início da aula.
Larissa foi se assentar na fileira do canto, no meio dela. Sua amiga Clarice chamou sua atenção mal ela se sentou.
— Menina! Que cara é essa? Parece até que saiu da cama e veio pra cá.
— Nem te conto. Sabe quando você tem um sonho que mais parece a sua vida do que sua própria vida? Tive um desses hoje. Tinha que ver… muito estranho. Eu me via no sonho…
— Nossa. Mas acho que já tive sonhos assim também, só não me lembro direito.
— …E a “eu” do sonho nem parecia comigo mesma. Muito mais bonita, popular, gostosa, rica e feliz.
— Sonhou com o futuro? Já pensou?!
— Nada! É uma coisa que já vinha suspeitando desde que vi num post do face falando que faz bem escrever sonhos: você conhece mais sobre si mesma. Pelo menos se procurar mais tarde num dicionário de sonhos, né.
— E tu acredita nisso?
— …
— Brincadeira. Eu também acredito. Minha mãe, tu, tua mãe, a gente, mulher, tudo acredita nessas superstições.
— Aí, a aula já vai começar.
Naquela tarde a primeira aula de geografia passou rápido como Larissa desimaginara. Por culpa de Richard, ela e Clarice não tiveram tempo pra conversa durante as explicações. Isso, embora, ocorreu algo incomum durante tudo isso. O estojo de Micaela sumiu de sua mochila. A princípio ela não sabia onde guardou, e depois, recorrendo a sua amiga Vanessa, esta lhe lembrou que sempre deixava o estojo na bolsa, afinal, era típico seu. Enquanto muitos deixavam encima da mesa por praticidade, ela mantinha na mochila. E sumiu. Alguém pegou ou ela colocou num local que já não se lembrava. Um ou dois, o tempo da aula passava e Micaela se desesperava para guardar o material que ficou — e ainda pegar o restante. A hora do recreio se aproximava e sem outra escolha, ainda que tivesse medo e fosse desacreditada por Richard, se ergueu da cadeira e foi sozinha cochichar no ouvido do professor que alguém “roubou” o estojo. Richard, sem querer acusar nenhum dos alunos, antes questionou-a se ela se afastou da mochila uma única vez. Ela disse que sim, mais cedo, quando foi beber água e ele não estava na sala. Ela era uma das que chegavam antes dele, uma das poucas que estavam na sala antes de tudo dar início. Sempre pegava o caderno e o material que precisaria e deixava encima da mesa meramente por hábito seu.
O professor ficou psicologicamente encurralado. Não havia o que fazer: faltava poucos minutos para o intervalo, mas, fechando a porta e dizendo que ninguém sairia até que o estojo de Micaela aparecesse encima de sua mesa, inocentemente ele envergonhava a garota na frente de todos e punha-na uma culpa que ela não merecia. Incutiu uma tensão na sala que já era demais até para sua pessoa.
Quem roubou o estojo de Micaela, isto é, se alguém roubou?
— Quem roubou o estojo de Micaela?
Quer mesmo saber? O que vai fazer se souber disso?
— É só para saber. Talvez faço um jogo com nomes, sei lá.
Pois então, foi sua própria amiga Vanessa que roubou. Enquanto Micaela estava fora, Vanessa quis pregar uma peça na amiga mas se esqueceu que pregou a peça. Agora o tiro saiu pela culatra. A sorte que não há nada de valioso dentro do estojo, mas reconhecendo o espírito pessoal de Micaela… essa é a situação que seu professor Richard colocou os alunos sob. Não há para onde fugir.
— Eu posso dizer que fui quem roubei o estojo.
Sim, mas seria pior para você. Por que faria isso? Alguma segunda intenção da qual ainda narrarei?
— Não tenho nada a perder e também não me importo com o que vão pensar. Além do mais, sabe de uma coisa? Eu confio em ti pra inventar uma desculpa que convença-os.
Pois então, o estojo está na sua mochila. Você sabe que ele está no bolso da parte de trás que fica escondido — que quase não se vê — e o estojo quase não cabe, mas você sente ele formando um volume pelas costas. Lhe surge a mesma sensação de tensão de antes: além de chegar atrasada, rouba o estojo da colega. Uma decepção Larissa, que decepção… se sua mãe soubesse disso… e conhecendo Richard, ou melhor, desconhecendo-o, você não sabe se ele chamará os seus pais. Tudo por uma peça mal esquecida.
Enquanto isso Vanessa sente sua mochila perder volume. Ela não sabe da nossa comunicação. Micaela conversa com ela. As duas ficam nervosas. A outra sabe que a culpa não é de ninguém mais ou menos além dela. Micaela descrê que ninguém mais ou menos além da amiga pegou o estojo, afinal, só ela poderia ter feito isso e nunca o fez, somente agora, por que motivo?, ela pergunta-se.
— Não há motivo.
Não há motivo.
— Foi por brincadeira mesmo.
É, foi por brincadeira mesmo. Que fará, Larissa?
— Alguém botou o estojo na minha mochila para me culpar. É só escolher o mais zoado da turma que aposto que ele arca com isso.
Maique?
— Pode ser.
Larissa ergue a mão e se entrega. Ela de fato não queria estar naquela situação, mas era o único — seu — jeito de resolvê-la; ou não. Foi o que ela escolheu.
— O estojo tá na minha mochila, mas não fui eu que peguei, não. Alguém colocou na minha mochila.
— Larissa?! — diz Clarice espantada.
— Então quem foi?
— Não sei.
— Acusar os outros desse jeito quando foi você mesma quem pegou, é fácil demais…
Mas…
— Como? A Larissa acabou de chegar.
Eu disse que não ia dar certo.
— Você pode muito bem fazer eles se esquecerem desse fato.
Embora vá contra a lei natural da narrativa, os demais se esquecem que Larissa chegou atrasada e não pôde furtar o estojo de Micaela. Não foi ela. Isso cria um álibi para o álibi que ela quer criar.
— Então quem foi, Larissa? Quem você acha que foi?
— O Maique.
— Eu?!
— Você mesmo.
— Eu nem cheguei perto de tu, garota!
— É, todos acreditam que foi ele.
Todos acreditam em Larissa, todos creem que foi realmente como ela disse. Maique meteu a mão no estojo de Larissa, olhou se tinha algo valioso, mas como nada tinha, quis incriminar Larissa que nada tinha a ver com aquilo tudo. Seu plano quase deu certo.
Mais tarde Maique não desceu para o intervalo. Tudo por culpa sua, afinal, foi você quem escolheu incriminá-lo.
— Aposto que ele não está ligando.
Está sim, você não vê. Mas pelo visto também não se importa?
— Exato.
Larissa não pode ter controle sobre os outros personagens. Ela não pode nem deve roubar o meu lápis que traça a realidade das coisas, ainda assim eu venho a deixando usá-lo como quer, mas isso não pode ficar como está. Imagine se um homem pode comunicar-se e pede coisas diretamente a Deus. Como Larissa, a vida desse homem seria muito fácil e descomplicada. Todos os conflitos seriam simples de se resolver. E, de certa forma, não haveria história a ser contada.
— Como não? Eu ainda estou viva. Enquanto eu estiver viva terá história pra contar.
As pessoas não querem saber de um ser que consegue tudo o que tem facilmente. Elas querem ver esforço, ouvir batalhas, lerem sobre o sangue derramado por algo que você deseja. O que você deseja, Larissa?
— Ter vida boa, já não disse?
Mais “boa” do que já é?
— Sim, melhor. Por que não? Ou vai me dizer que não pode? Na verdade… já sei qual é o seu problema.
Que problema?
— Você tem medo. Tem medo de fazer certas coisas porque elas implicariam em algo diretamente na narrativa, até no seu modo de narrar. Por isso eu te peço umas coisas e você não faz…
Nem tudo eu sou capaz.
— Mentira! Troque de lugar comigo, anda. Me torna uma narradora também!
Não posso fazer isso.
— Pode sim. Desde que eu tenha voz eu posso narrar qualquer coisa. Aqui, ó, se me deixar falar eu conto a história do meu cãozinho! Seu nome era Tim
Se me deixar falar
Larissa se esquece da sua vulnerabilidade como personagem. Mesmo que ela conte a história, a história que quiser contar, sou eu quem decido se ela terá voz ou não na narrativa. Eu só não posso matá-la, nem tornar sua vida isenta de conflitos. Se fizer isso eu paro — paro de ser eu mesmo.