sexta-feira, 21 de agosto de 2015

As Horas de Ramira

Ramira dos Santos, vinte-e-um anos, hoje, quinta-feira, por ventura saía do trabalho mais cedo. Na caminhada olhando as vitrines, comprando pipoca, parando e sentando num banco de praça e aproveitando o wi-fi público a fim de bater papo com uma amiga, É, ele era um cara grudento, você viu o que ele fez, Grudento, É essa pedra de corretor, nojento*, Merda*, até o ponto de ônibus e sua descida, ela imaginava como aproveitaria o resto do dia conforme as novas horas que recebera — ainda que no seu âmago duvidasse de que elas, afinal, realmente fariam diferença.

Do ponto até sua casa era uma esquina, mas escolheu dar meia volta e entrar na padaria logo atrás. Olhou o estoque enquanto uma fila enorme se fiava, provavelmente — suposição pautada em estatísticas colhidas de experiências próprias da vida — pelo pão da tarde. À medida que optava o tempo passou e por culpa, ou graças, dependendo da situação e do ponto de vista, de sua indecisão, a fila já se diluía quando resignou-se em comer um sanduíche.

Mal chegou em casa, isto é, no instante que passou o portão e pegava a chave na bolsa ouviu o telefone zumbir através da vidraça da janela, tão alto que ouviu-o da rua e foi ele a causa de seu nervosismo sucedido da pressa e que, por sua vez, fê-la derrubar a chave tentando encaixá-la com o formato retilíneo — e um detalhe rosa, por sinal — na fechadura. Meu Deus, quem será que perturba?!

Gratificada vendo seus móveis a receberem mais cedo, distintamente do horário habitual, quando puxou o telefone da base, escutou, pensou duas vezes e não o colocou de volta. Era uma chamada de promoção, na qual um rapaz perguntava da outra linha, Boa tarde, com quem eu falo, Com a Ramira, Boa tarde, senhora Ramira, a senhora sabe da promoção que a AdvI está fazendo para pessoas menores de vinte e cinco anos que ainda não ingressaram numa faculdade, não estão trabalhando, não terminaram o ensino médio, não falam mais de uma língua, não moram sozinhos, não possuem renda própria, casa própria, ou que não fazem parte da AAA, exatamente assim, três sons de “a”, foi como falou, O que é AAA, Associação dos Alcoólicos Anônimos, Não era AA, O nosso é uma associação, E qual a diferença, A senhora tem interesse em saber da promoção que a AdvI está fazendo, Vai, fala, quero saber, A promoção que a AdvI está fazendo é uma promoção que visa ajudar no crescimento pessoal e obtenção de sucesso em vida para pessoas que são menores de vinte e cinco anos que ainda não ingressaram numa faculdade, não estão trabalhando, não, Você já falou, disse, mantendo uma paciência que intencionalmente queria ostentar superioridade, Senhora, senhora Ramira, Sim, Gostaria de saber mais a respeito da organização, Quero, quero saber como é que quem tá no comando têm a cara de pau de contratar funcionários incompetentes para as funções deles, A senhora Ramira deseja saber mais a respeito disso, Por Deus, Nossa organização foi criada em mil novecentos e noventa e oito, pelo então ex-chefe geral Domingos Quinteiro Rafael do Prado, na época com trinta e um anos, e seus cofundadores foram os colegas Raimundo, Lígia, Fernando, Roberta, Petê Parcos, e Marcos, dois deles mortos atualmente e um ex-membro da organização, como disse, repetindo, a organização de nome AdvI visa ajudar jovens que, dada as suas idades, pressupostamente deveriam ter certa quantidade de bagagem e experiências de vida mas por casualidades da mesma ou em casos mais separados, por irresponsabilidade dos próprios, não conseguem o que deveriam, pressupostamente, reafirmo, pressupostamente, terem, o que, seja qual for o caso nós aparecemos para incentivá-los a subir na vida e por mais que seja improvável, algum dia, galgando o pináculo do sucesso ou um minisucesso, esses jovens, agora adultos, aleguem que mudaram de vida graças a nossa organização, compreendido, senhora Ramira, Acho que sim, Pressupõe ou acha que sim, Pressuponho, Em quais dos casos a senhora Ramira se encaixa, senhora Ramira, Não falo mais de uma língua, A senhora gostaria de saber como poderia vir a falar uma outra língua, Isso está me parecendo uma ameaça, De fato, já tivemos clientes que por falta de cuidados próprios ou da organização, até hoje incerta a causa, faleceram no exterior, estudando as novas línguas, Sei, A senhora está interessada em participar do nosso programa, Vem cá, me diz uma coisa, se eu quiser falar com vocês novamente, e com você em específico, posso saber qual o seu nome, Repetindo, a senhora está, e não deixou que terminasse a pergunta.

Pôs as compras em cima da mesa na cozinha e, Que que foi aquilo? Onde já se viu isso? Ligando para me perturbar! Parecia até que eu estava naquele filme, caramba, esqueci o nome, ai, como é que era o nome dele mesmo... Depois vou perguntar a Mayara, ela deve saber, imagine só quando disser que eu conversei com um robô! Quê, ela vai falar, aposto, Pior que é, filha, máquinas falam, sabia não, não é ficção científica não, é o nosso mundo, o avanço tecnológico é tanto que em pouco tempo, lembre-se, o ser humano será substituído pela máquina pra tudo! Para tudo! Chega a ser engraçado…

Tomou um banho, fez o sanduíche, falou com Mayara e sentou-se no sofá para assistir televisão.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Obra Nº 1

Sentado no vaso sanitário, pensando no que eu iria escrever quando saísse dali. Era um banheiro público, primeira vez na minha vida que eu resolvo usar um desses, mas era um caso de emergência. Olho para trás para pegar o papel higiênico, é... Cadê o papel? Olho para os lados, olho em baixo, olho em cima, nada de papel. No desespero eu abro minha mochila, abro todos os bolsos e há somente três folhas; droga, logo essas? eram as folhas do roteiro que eu estava escrevendo para mostrar à um diretor de peças de teatro. Bem, eu pensei: "Não vou perder a ideia que escrevi no papel da minha cabeça, fazer o quê, não posso sair por ai sujo desse jeito." Peguei as folhas e limpei, quando sai do banheiro público, eu tinha esquecido qual era o meu objetivo ali no centro da cidade, foi ai que eu lembrei: "Eu tenho que ir até a empresa de arte daquele diretor para entregar o roteir... Porcaria! como eu pude esquecer?!" O problema é que o prazo para entrega era até aquele dia ao meio-dia, já eram onze e quarenta e cinco. E como o diretor nunca estava presente, o roteiro era para ser entregue impresso para a sua secretária. Voltei então ao banheiro para pegar o roteiro, isso mesmo, tomei a decisão mais desesperadora possível. Coloquei minha mão na lata de lixo e peguei os três papéis amassados e sujos, mesmo com nojo, comecei a raspar a sujeira do papel na parede do banheiro, até sair um pouco, mas não por completo. Fui correndo para a empresa, chegando lá, cumprimentei a secretária e disse: "Eu vim entregar o roteiro para o Sr. Ronald", e a resposta da secretária foi: "Ó, sinto muito, o roteiro era para ser entregue dia vinte de setembro, ao meio-dia.", logo questionei: "Mas hoje é dia vinte de setembro", então... "É, mas já são quatro horas da tarde." Foi quando eu olhei para o meu relógio e lembrei que eu tinha atrasado o bendito quatro horas. Perdi essa chance, mas já se passaram cinco anos do ocorrido, não saio mais de casa, estou tão depressivo, mas não por conta do roteiro, mas tentando descobrir porque eu atrasei o meu relógio.